terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Veneza Precisa dum Favela-Bairro

Nalgum ponto entre Veneza e Milão

O cachorro da última postagem foi protagonista dum pequeno incidente. Na fronteira com a Croácia, a polícia, antipática ao extremo, foi vasculhar o vagão e, aparentemente, o pastor alemão deu um avanço em cima do pequenino cocker. O bicho ficou a ganir e, mesmo um crápula como eu, compadeci-me do sofrimento do animalzinho enquanto os demais passageiros cagavam e andavam. A dona disse que não estava ferido e só sofrera um trauma! O problema é que o cão com desvios psicológicos doravante começou a latir, em plena madrugada, no meio do vagão, o tipo de soporífero que se espera numa viagem – em poltrona – de quase quatorze horas.
Na outra zica européia da qual fui partícipe, também ninguém moveu uma palha. No metrô de Berlim, dois brasileiros, nossa norueguesa e eu assistimos uma mãe australiana sem noção deixar seus dois moleques partirem na composição sem ela. O mais velho abriu o berreiro e todo mundo fazia cara de bunda suja. Descemos na estação seguinte com os putos, enquanto me desesperava de notar um dos sem vergonhas se aproximando da beira da plataforma e antever sua morte e minha conseqüente prisão na Alemanha e difamação como torturador de crianças indefesas!
A única cidade que me estressou nesta viagem foi Veneza. Minha idéia era, assim que chegasse às 07:15, deixar a bagagem na estação, dar uma volta e pegar o trem noturno para Nice. A eslovena com quem conversava no trem garantiu que nada parte no horário certo e deveras a coisa que o locutor da estação de Santa Lucia mais anunciava era:
- Noi informiamo che il treno da Ferrara (ou qualquer outra cidade) arriverà con cinquanta minuti di ritardo. Ci scusiamo.
Quando bisoei a tabela de horários, cadê meu trem noturno?! Simplesmente eliminaram o pobre coitado e eu tive a péssima, péssima idéia de pernoitar na cidade dos canais. Fui ao guichê de informações turísticas, onde me deram um guia hoteleiro e um mapa, ambos sem qualquer indicação dos nomes das ruas.
- Você procura o albergue aqui em Cannareggio, San Paolo ou Santa Lucia – e ela circulava os bairros sem maiores esclarecimentos.
De qualquer forma, essa supérflua informação não faria qualquer diferença: a cidade é um labirinto. Bistegas, pontes, passagens estreitas, prédios mal-alinhados, sinalização precária devem fazer a diversão das crianças, mas a mim emputeceram. (Há uma palavra bem vulgar que sintetiza exatamente o que são ruas estreitíssimas, mas o pudor impede-me de escrevê-la no blogue; o leitor cortês e pervertido venha por obséquio perguntar-ma.) Em vez de os cornos porem placas, como em qualquer outra cidade do mundo, nomes de ruas e números são pintadas nas paredes, sendo que a última vez que as fachadas viram tinta foi no tempo dos doges. O sistema de numeração também não possui lógica alguma e, mesmo depois de ajudado por uma velhinha a encontrar o 2927, quando feliz fui vendo o 2924, 2925, 2926, o número pulou para o três mil quinhentos e cacetada! A estreiteza das ruas faz a Rua das Marrecas parecer um bulevar. A auto-intitulada Calle Larga, não pude deixar de rir, deveria ter uns três, quatro metros de largura. Quando a polícia carioca fala da vantagem tática dos traficantes que conhecem o terreno, o mesmo aplica-se a Veneza – só os venezianos conseguem se locomover com folga. E o símile não pára aí. Trata-se com toda justeza dum favelão: as ruas serem tortas, sem arborização alguma, a arquitetura feiosa, a simetria uma revelação da geometria por fazer-se, vai lá; é uma questão de conservação das suas características antigas; agora, o reboco todo baleado, tijolos à mostra, uma gambiarra de fios a grimpar pelas fachadas, portas pichadas, canos voadores, ruas imundas com cocô canino (assim espero), isso pra mim é favela. Aliás, em toda a Europa, onde se vê mais tchotchoros do que crianças, o único lugar em que um cão veio perseguir-me e latir nas minhas pernas foi em Veneza! E estamos – lembremos – no Norte da Itália, a parte superdesenvolvida e civilizada que se quer separar daquele lixão sulista!
Mencionarei um elemento importantíssimo para afugentar de vez o turista, ou melhor, o durista, que é a categoria na qual me enquadro: o preço astronômico de tudo. O albergue em que fiquei – quarto privativo e café da manhã incluído, confesso – custou-me cinqüenta (repito, cinqüenta!) euros; um fiapo de espaguete, cinco contos; internete, quinze minutos, dois e cinqüenta. Os cidadãos que vão para lá, concluí, são os mesmos que alegremente pagam para flanar pela Rocinha!
Sei que a cidade deixou-me tão mal humorado que, pela primeira vez em toda a viagem, preferi passar a tarde dormindo a ir passear. Não fui ver de dia nada de manjado: Praça de São Marcos, Ca’ d’Oro, navegar de gôndola (o que deve custar uma fortuna).
Berlim é feia mas ajeitada; Veneza, no entanto, é feia e não escova os dentes. À noite, até que se tornou passável, porque o escuro sempre camufla a feiúra, razão pela qual todas as boates são pouco iluminadas... Ainda assim não me aventurei muito com justo receio de perder-me. Na calada da noite, Veneza é “apavorizante”: a entrada do prédio onde estava saiu d’O Barril de Amontillado. E o clichê de que ela é romântica, os pombinhos a singrar suave embalados por uma ária, constitui a prova irrefragável de que o amor é cego.
Há apenas um ponto positivo – o clima; o frio daqui é bundalelê total. Depois dos perrengues em Berlim e imediações, senti-me no verão. (O maior frio por que passei na vida continua, porém, sendo o daquela mal-sinada excursão a Vassouras.)
A Itália e eu somos tão vocacionados a detestar um ao outro. Depois de encontrar três caixas eletrônicos defeituosos, meu cartão foi enjeitado pela maquineta e, além de mal-humorado, perdido e cansado, fiquei dureba e tive impulsos de afogar-me no Adriático.
A melhor coisa que faço é ralar peito o mais rápido possível dessa nação caótica. O olor das ruas entre o amaciante de roupa e a creolina.não me deixará saudade; depois dessa bola-fora, só volto sendo pago!
Ah! Se tivesse ido para Ljubljana, evitaria tais dores-de-cabeça. O leitor deve perguntar-se o que há de interessante lá e titubeio entre duas respostas: a) nada; b) ruas bem sinalizadas.
A Eslovênia perdeu afinal a oportunidade de seus quinze minutos de fama ao não participar das guerras que sucederam a secessão da Iugoslávia e impedir que criancinhas mutiladas e velhos estropiados aparecessem diante das câmeras! Um bósnio em Berlim, conversando comigo e com uma argentina, fez menção de que a única coisa que se conhece da sua terra pelo mundo afora é sobre a guerra. Mas, acrescento eu agora, a Bósnia, bem ou mal, ainda é lembrada e não poucos saberão indicar que a capital se chama Sarajevo, ao passo que a pequetita Eslovênia é sempre confundida com a Eslováquia e Ljubljana permanece tão obscura quanto Varre-e-Sai.
Meu reiveiom mambembe... Originalmente queria Praga, mas dificuldades logísticas (a volta para Madri) foram abortando a idéia; agora, graças aos húngaros e italianos, luto para chegar a Barcelona a tempo.
Veneza, Veneza... Que afunde Veneza!



Duas marcas do Ocidente: lixo e informação.



"Cão, tu que és inteligente, ensina ao teu acompanhante ignorante a recolher os cocôs!” Dante, A Divina Comédia, Inferno, Veneza.

Um comentário:

Ana Luiza disse...

A tal excursão pra Vassouras foi a do Quilombo São José?

Tb estava lá :) realmente um frio desesperador! bjoks